Consciência ‘senzaliana’

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Quadro de Debret sobre a escravidão

“Guarde estas sementes de acointú com você. Coma-as, caso te recapturem”. Claro, que eu queria fugir. Todos sempre ouvimos dizer da vida livre no quilombo chefiado por Zumbi. Só não sei exatamente como chegar; temo não encontrar as refeições que demarcam as encruzilhadas do caminho e que nos dão força para continuar. Os malfeitores do dono da fazenda conhecem bem esta terra. Posso ser presa fácil. Só me restará a morte que germinará em mim através destas sementes.

Mas, o que é a vida? Sei um pouco dela através dos fragmentos de histórias que alguns pretos velhos daqui me contam. São contos seculares e muita coisa caiu no esquecimento, até mesmo, dos nossos anciãos – já que eles também nasceram sobrevivendo em meio à humilhação, tortura, estupros, assassinatos e muito trabalho forçado. Nunca viram o sol da África.

Também imagino um pouco sobre o que é a vida pela forma que as crianças – filhas e familiares dos donos desta fazenda – brincam, comem e sorriem. As mulheres de minha raça, imagino, também devem ter esta minha visão – ou até melhor – por conta da proximidade com aquele ‘Jardim do Édem’.

Porém, quando elas voltam para a senzala, vejo claramente que esta ‘vida’ não tem nenhuma relação com a felicidade. Há poucos dias, uma ‘irmã’ gritava aos prantos a morte de seu bebê. Culpava-se, mesmo sem ter culpa. Isso porque ela ficou durante uma semana amamentando o bebê de sinhá, cujo leite secou. Seu ‘pretinho’ morrera de fome.

A morte. Esta, todos aqui conhecemos bem. O cheiro dela está no vento que faz arder nossas feridas abertas pelo chicote com pregos em suas pontas. O sangue imerge da lama que pisamos. Em cada olhar, há morte. Sou incompatível a espelhos: a morte vê a morte.

A morte aqui é forte pela manutenção da riqueza para poucos; pela falta de respeito e amor ao próximo; pelo mau uso do nome do deus deles para ‘abençoar’ seus crimes; pelo egocentrismo; pela necessidade do ouro que reluz o único valor destes opressores de altíssima periculosidade.

O que eu queria era ter colo e o incentivo materno quanto às minhas qualidades. Queria, mesmo que por uma vez, conhecer na alma esses coisas que todos falam com lágrimas nos olhos: felicidade, ‘vida’, amor.

Isso, para caso um dia tirarem as correntes de nossos braços e pernas (se assim, os orixás quiserem) não nos acusarem de desalmados, nem que finjam desconhecer o porquê de não nos haver sorrisos. Que, pelo menos, deem-nos oportunidades – já que uma passagem de volta para África de nada adiantará: para onde irei e a quem procurarei 400 anos depois? Mas, pela imensidão do ‘banzo’ não é difícil imaginar a benção do que é o contrário disso.

Mesmo que nos finjam amor; que ignorem os crimes; que não haja punições; que não peçam desculpas; que imputem a mim a inferioridade que nunca entendi ter – digo: devolverei todo este ódio praticado contra nós em amor e que isto lhes guie.

Peço a meu guia que, num futuro breve, não tenhamos mais a necessidade de fuga, nem o temor à perseguição de quem julga nossos donos. Que nossos filhos não sejam espancados diante dos pais, que assistem amarrados como castigo (mesmo que simbolicamente). Que a pobreza não vingue e nem seja a escravidão de novas raças.

Que tenham consciência de igualdade, mesmo que a consciência nunca doa – pois sabemos que a única lógica para a existência de preconceitos será para guardar a sete chaves o misto de medo e arrependimento (se um dia seguirem de verdade o próprio Deus) das próprias mazelas cometidas. E as sementes de acointú de hoje sejam substituídas por livros. Apesar da fé, não sei se viverei até lá. Anoiteceu. Tenho que correr!

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