Por: Gabriela Fonseca
@psigabriela_fonseca
“Ohana quer dizer família. Família quer dizer, nunca mais abandonar – ou esquecer.” – filme Lilo & Stitch.
Essas palavras ressoam profundamente em nossos corações, e não é à toa que Lilo & Stitch se tornou um dos maiores clássicos da Disney. O filme toca em temas universais que atravessam a experiência humana, como o desejo de pertencimento e os traumas que carregamos. Recomendo que você reassista a essa obra-prima antes de explorar este texto.
Logo no início, encontramos Stitch, uma criação do cientista Jumba, sendo convocado em uma assembleia alienígena por sua periculosidade. Os rótulos que lhe são impostos são pesados: “bizarro”, “malvado”, “feito para destruir”. Assim como muitas crianças, Stitch é moldado por percepções externas, que muitas vezes não refletem quem realmente somos. Desde pequenos, somos inundados por expectativas e definições: “Como você é lindo!”, “Você é igual ao seu pai/mãe”, “Que menino/a levado!” Essas palavras, embora carregadas de afeto, podem também construir identidades limitadas.
A fase do espelho, um conceito fundamental na psicanálise, nos revela como nossa identidade é formada. Quando uma criança se vê no espelho, passa por momentos de estranhamento, transitoriedade, e finalmente, reconhecimento. No entanto, essa fase pode se transformar numa estrutura permanente, onde o que vemos no outro é um reflexo do que já existe em nós. Lacan nos ensina que o outro é um espelho; é através do olhar do outro que começamos a nos entender, a dar significado à nossa existência. E muitas vezes, os rótulos que recebemos moldam nossa autoimagem.
Retornando ao filme, vemos Stitch se comportar como lhe foi ensinado: “malvado”, “feito para destruir”. Sua agressividade e rebeldia são respostas a uma identidade que lhe foi imposta. Um momento impactante ocorre quando, em resposta a uma pergunta da assembleia, ele expressa uma ofensa intraduzível, reafirmando seu estigma de maldade.
Mas então, Stitch encontra Lilo, uma criança órfã que, assim como ele, se sente deslocada e incompreendida. Lilo, marcada pela dor do abandono, se identifica com o “cachorro feio” que adota. Sua curiosidade e desejo de cuidar a fazem ser vista como diferente, e isso a aproxima de Stitch. É um encontro de almas que, por razões diferentes, se sentem alienígenas em um mundo que não as compreende.
Lilo, com sua esperança e determinação, começa a transformar o rótulo de Stitch. Ela o vê não como um monstro, mas como alguém digno de amor. Através de palavras carinhosas, ela o chama de “anjinho” e “bonzinho”, oferecendo a ele a chance de renascer. É nesse acolhimento que Stitch encontra um novo caminho. Ele sente, talvez pela primeira vez, o calor da aceitação.
Enquanto isso, a vida de Lilo é marcada por incertezas. A assistente social Bubbles ameaça separá-la da irmã Nani, que luta para garantir um lar seguro em meio ao caos. O amor que une essas duas irmãs é testado, mas também é esse amor que dá força a Lilo para enfrentar os desafios. Quando Bubbles exige que Lilo eduque Stitch para ser um “exemplo”, ela recorre a Elvis Presley, sua própria referência de bondade e carisma, para guiar Stitch em sua transformação.
Nesse momento cômico e tocante, Stitch começa a mudar. Ele se esforça para ser o que Lilo espera, e nesse processo, descobre uma nova faceta de si mesmo. Através da empatia que Lilo lhe oferece, ele percebe que não precisa ser o que os outros disseram que ele era. Esse renascimento é um reflexo do que acontece em terapia: somos convidados a ressignificar os significantes que nos foram impostos, a revisitar e reconstruir nossa identidade.
Lilo & Stitch nos ensina que, apesar de nossos traumas e rótulos, todos nós temos dentro de nós o desejo de pertencer, de encontrar um lugar onde somos aceitos. O amor e a aceitação de Lilo por Stitch, assim como o cuidado de Nani, criam um espaço seguro onde eles podem se transformar. O filme nos convida a refletir sobre o poder das palavras que usamos e como elas podem ferir ou curar.
No final das contas, Lilo & Stitch é uma celebração do amor. É sobre amizade, sobre ohana, e sobre como família vai além do laço sanguíneo. O que é considerado “alienígena” para uns pode ser acolhido por outros.
Todos nós, independentemente de nossas origens, buscamos pertencimento e aceitação. O amor, em sua forma mais pura, é um ato de rebeldia em um mundo que muitas vezes parece tão indiferente. Como Freud destacou, a busca pela cura é, em essência, uma busca pelo amor. Que possamos, assim, nos tornar agentes de transformação e acolhimento, celebrando a autenticidade em um mundo que muitas vezes tenta nos uniformizar.