Por: Gabriela Fonseca
@psigabriela_fonseca
A Lótus Azul (Nymphaea caerulea), muito além de uma flor aquática de coloração azul-lilás, possui um histórico de uso que remonta ao Egito Antigo, sendo amplamente associada a rituais religiosos e festividades consagradas aos deuses egípcios. Considerada uma planta sagrada em diversas tradições espirituais, incluindo o Budismo e civilizações pré-colombianas, como a Maia, seu simbolismo e propriedades psicotrópicas vêm despertando crescente interesse na contemporaneidade, especialmente entre usuários de dispositivos de vaporização (vape) e praticantes de rituais místicos.
No entanto, apesar do seu uso tradicional e da crescente popularização moderna, há uma lacuna significativa no conhecimento científico acerca dos seus efeitos toxicológicos e terapêuticos. Profissionais de saúde não dispõem atualmente de diretrizes baseadas em evidências sobre os possíveis riscos associados ao consumo da Lótus Azul, especialmente a longo prazo. Ainda que análises fitoquímicas tenham identificado diversos alcaloides bioativos na planta, a interação dessas substâncias com o organismo humano permanece pouco compreendida. Essa lacuna se agrava devido à dificuldade na detecção de seus compostos em exames toxicológicos e à presença de múltiplas substâncias com potenciais interações entre si, bem como com o álcool e outros métodos de consumo divulgados informalmente na internet.
Diante disso, torna-se fundamental ampliar os estudos não apenas sobre a Nymphaea caerulea, mas também sobre outras substâncias de uso não convencional, a fim de desenvolver estratégias eficazes para prevenir e manejar potenciais efeitos adversos.
Composição Fitoquímica e Mecanismos de Ação
A análise fitoquímica da Nymphaea caerulea revela a presença de diversos alcaloides com atividade psicoativa, incluindo Aporfina, Apomorfina e Nurciferina.
Apomorfina: Agonista não seletivo da dopamina e modulador do sistema serotoninérgico, atuando como agonista parcial dos receptores 5-HT1 e antagonista dos receptores 5-HT2. Evidências sugerem que essa substância pode estar associada a potenciais efeitos ansiolíticos, propriedades hipnóticas e até mesmo aplicações no tratamento da doença de Parkinson e da esquizofrenia (Schimpf et al., 2023).
Nurciferina: Apresenta um perfil de interação mista com os sistemas dopaminérgico e serotoninérgico, sendo antagonista dos receptores 5-HT2 e agonista parcial dos receptores D2, D5 e 5-HT6. Embora seu potencial terapêutico seja promissor, há uma escassez de dados clínicos sobre seus efeitos a longo prazo.
Aporfina: Associada a efeitos psicoativos moderados, incluindo relaxamento e euforia.
Embora algumas literaturas mencionem o potencial afrodisíaco da planta, não há evidências clínicas robustas que sustentem essa propriedade.
Estudos de Caso e Relatos de Uso
Relatos anedóticos e discussões em fóruns online indicam uma ampla variabilidade nos efeitos do consumo da Lótus Azul, dependendo do método de administração. O fumo e a vaporização parecem intensificar as propriedades psicoativas, enquanto a ingestão por infusão (chá) ou maceração em álcool (vinho) pode resultar em efeitos mais sutis.
Um estudo conduzido por Schimpf et al. (2023) analisou os efeitos da inalação da Nymphaea caerulea em um grupo de jovens soldados. Durante a observação clínica, foram documentadas alterações significativas no estado de consciência, sendo que um dos participantes apresentou episódios de taquicardia, ansiedade e dores torácicas. No entanto, como o consumo não foi realizado de forma isolada, mas em combinação com outras substâncias presentes no vape, torna-se difícil estabelecer uma correlação direta entre os sintomas e a Lótus Azul. Outros participantes apresentaram apenas alterações transitórias, retornando ao estado basal após a cessação do efeito.
Até o momento, não há registros documentados de mortalidade ou desenvolvimento de dependência química associada ao uso da Nymphaea caerulea. No estudo supracitado, os participantes não necessitaram de intervenção farmacológica com benzodiazepínicos ou sedativos, sugerindo que os efeitos adversos, quando presentes, foram autolimitados.
Questões Regulatórias e Desafios na Identificação da Espécie
A ausência de regulamentação específica para o consumo da Lótus Azul nos Estados Unidos e no Brasil representa um desafio adicional, uma vez que a planta pode ser adquirida facilmente por meio de plataformas online, sem qualquer controle de qualidade ou garantia de autenticidade. Um problema recorrente relatado por consumidores é a confusão entre Nymphaea caerulea e outras espécies aquáticas visualmente semelhantes, como o Lírio Roxo Aquático, que possui propriedades psicoativas menos intensas. Essa falta de padronização pode comprometer a segurança dos usuários, que muitas vezes desconhecem a composição real do produto consumido.
Conclusão e Perspectivas Futuras
O uso crescente da Nymphaea caerulea destaca a necessidade urgente de investigações científicas mais aprofundadas sobre seus efeitos farmacológicos, potenciais riscos e possíveis aplicações terapêuticas. Antes que qualquer recomendação clínica possa ser estabelecida, são essenciais estudos controlados e observações clínicas rigorosas para esclarecer a segurança e a eficácia da planta.
Dado o aumento do consumo global e a facilidade de acesso a produtos derivados da Lótus Azul, pesquisas adicionais são imprescindíveis para o desenvolvimento de diretrizes de segurança, regulamentação apropriada e estratégias de manejo de possíveis complicações relacionadas ao seu uso.
Referências:
SCHIMPF, Mackenzie et al. Toxicity from blue lotus (Nymphaea caerulea) after ingestion or inhalation: a case series. Military Medicine, v. 188, n. 7-8, p. e2689-e2692, 2023.
Economic Botany. Published by: Springer Nature on behalf of New York Botanical Garden Press.